Ensaio – Filosofia e Computação: aproximações possíveis

A ciência pode ser organizada em diferentes áreas do conhecimento, de acordo com seus objetos de estudo e os métodos empregados. De modo geral, distinguem-se as ciências humanas, que investigam o ser humano, a cultura e a sociedade; as ciências exatas e da Terra, voltadas para os fenômenos naturais e os modelos matemáticos; e as ciências biológicas ou da vida, dedicadas à compreensão dos organismos vivos e de seus processos. Dentro dessa classificação, encontram-se áreas específicas como a filosofia e a história, no campo das ciências humanas, e a matemática e a computação, no campo das ciências exatas e da Terra.

Nas ciências exatas, a subjetividade geralmente não é considerada, uma vez que seus resultados são objetivos e verificáveis. Dois números somados resultam em um valor específico; uma função que recebe determinada entrada retornará uma saída correspondente; uma variável, quando declarada, será inicializada e permanecerá ativa enquanto o programa estiver em execução. Na filosofia, entretanto, a complexidade aumenta, pois não basta obter uma resposta imediata: é necessário investigar o que está por trás da questão.

Chauí (2019), ao introduzir conceitos filosóficos em Convite à Filosofia, observa que muitas perguntas cotidianas podem ser respondidas de forma direta. Por exemplo, ao perguntarmos “Que horas são?”, espera-se uma resposta precisa, como “são duas horas” ou “quatorze horas”. Contudo, sob uma perspectiva filosófica, não basta indicar o horário: é preciso questionar o que é o tempo, por que ele é medido e o que esse conceito representa em nossas vidas.

Na computação, uma postura semelhante pode ser aplicada. Quando um estudante declara uma variável, em geral compreende-a apenas como um espaço na memória destinado a armazenar um tipo de dado — como caracteres, inteiros ou valores booleanos. Dependendo da linguagem de programação, esses tipos podem ser definidos de forma estática ou dinâmica. Entretanto, uma abordagem mais reflexiva permitiria questionar: o que é, afinal, uma variável? Onde está armazenada? Por que deve assumir determinado tipo e não outro? Essas indagações conduzem a conceitos fundamentais da ciência da computação, que raramente são explorados em cursos de formação técnica, mas que são indispensáveis para um entendimento crítico e profundo.

Nesse contexto, o professor desempenha o papel de mediador do pensamento, e não de simples detentor do conhecimento. Ainda que nem sempre haja espaço em sala de aula para discussões filosóficas, é essencial estimular os estudantes a buscar esse aprofundamento. Como destaca Chauí (2019), o pensamento crítico é uma atitude de não aceitar o óbvio, mas de investigar as razões mais profundas. Essa postura, se aplicada à computação, pode enriquecer a formação acadêmica e profissional.

Um exemplo relevante é o uso de frameworks no desenvolvimento de software. Muitos estudantes os utilizam apenas como ferramentas práticas para alcançar determinados resultados. No entanto, por trás desse uso, encontram-se discussões mais amplas: a inversão de controle (Inversion of Control — IoC), a injeção de dependências (Dependency Injection — DI), o comportamento das classes, o papel dos objetos e até mesmo a forma como esses elementos se organizam na memória do computador. A análise crítica desses fundamentos leva a uma compreensão mais sólida do processo de desenvolvimento e amplia a capacidade de reflexão do estudante.

Este ensaio, portanto, busca aproximar conceitos filosóficos da computação, incentivando a reflexão e o desenvolvimento do pensamento crítico. Muitas vezes, o ensino técnico restringe-se ao aspecto instrumental: o estudante aprende a executar, mas não a questionar. Da mesma forma que a pergunta “Que horas são?” pode ser respondida de forma superficial ou analisada em profundidade, o mesmo ocorre com a programação. Cultivar uma postura crítica diante do código e do processo de criação é essencial para formar profissionais que vão além da prática imediata, alcançando uma compreensão mais profunda da ciência da computação.

Referência

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 15. ed. São Paulo: Ática, 2019.

Os conteúdos deste site refletem exclusivamente as opiniões do autor, não representando, em hipótese alguma, as posições de quaisquer organizações com as quais ele possua vínculo. É permitido o uso apenas para fins não comerciais, sendo proibida a criação de obras derivadas, conforme a licença Creative Commons BY-NC-ND. É obrigatória a atribuição ao site original: https://luizpicolo.com.br.